Artes de Governar - A Governamentalidade de Michael Foucault
Um exemplo de governo está na metáfora do barco. Governar o barco é
governar os homens que manejam as diversas funções do barco, governar a relação
dos homens com as diversas partes do barco, governar as habilidades e competências
dos que trabalham no barco.
Enquanto
hoje a palavra governo possui somente um significado político, Foucault é capaz
de mostrar que até boa parte do século XVIII, o problema do governo era
colocado em um contexto mais amplo. Governo era um termo discutido não apenas
em tratados políticos, mas também em textos filosóficos, religiosos, médicos e
pedagógicos. Além de gestão pelo Estado ou pela administração, “governo” também
significava problemas de autocontrole, orientação para a família e para as
crianças, gestão doméstica, direção da alma, e assim por diante. Por esse
motivo, Foucault define governo como conduta, ou, mais precisamente, como “a
conduta da conduta” e, logo, como um termo que vai do “governo de si” ao
“governo dos outros”. De maneira geral, em sua história da governamentalidade,
Foucault se empenha para mostrar como o Estado soberano moderno e o indivíduo
autônomo moderno determinam reciprocamente suas emergências [aula de 8 de
fevereiro de 1978 – Foucault, 1982, p. 16-17; Foucault, 1995, p. 243–244;
Senellart, 2006].
Para
sustentar sua tese, Foucault faz oposição à literatura de O Príncipe de Nicolau
Maquiavel [1469-1527]. Em seu discurso, Maquiavel observa que os modelos de rei
justo e bom já não servem para seu tempo. O bom rei medieval que dava coisas
para os súditos logo será substituído por outra figura, que é a do bom
administrador; agora, ele precisa dominar os conhecimentos necessários para
gerir seu território, como, por exemplo, cuidar da economia do Estado e do seu
exército. Desde logo, percebe-se que o modelo medieval de rei justo e bom é
mais pernicioso ao seu país do que o soberano que se serve de todos os meios,
inclusive ilícitos, para conservar o Estado que ele recebeu. O soberano será
bom se for eficaz, capaz de perpetuar-se no poder para conseguir a estabilidade
do Estado, ainda que submeta outros príncipes. Mas, para Foucault, o problema
de Maquiavel não é a conservação do Estado em si mesmo; antes, o que ele
procura salvaguardar é a relação do Príncipe àquilo sobre o qual ele exerce sua
dominação, quer dizer, o principado como relação de poder do Príncipe sobre seu
território ou sua população [Foucault, 2004a, p. 248].
A evolução
das relações e o surgimento de novas formas de economia, fizeram com que
surgissem novas artes de se governar; novas maneiras de se manter no poder se
fizeram necessárias, e isso se deu de diferentes maneiras, através da
multiplicidade de artes de se governar.
Sua tese
era que esse modelo de poder sustenta tanto as teorias liberais da soberania,
quanto as concepções marxistas dogmáticas da dominação de classe. Enquanto
aquelas alegam que a autoridade legítima é codificada na lei e está enraizada
em uma teoria de direitos, estas localizam o poder na economia e consideram o
Estado um instrumento da burguesia. A suposição comum dessas concepções
bastante heterogêneas é a ideia do poder como algo que pode ser possuído [por
uma classe ou pelo Estado, por uma elite ou pelo povo], que é primariamente
repressivo em seu exercício e que pode ser localizado em uma fonte única e
centralizada, como o Estado ou a economia [Foucault, 1980, p. 78-109; Hindess,
1996].
Foucault
está interessado na questão de como relações de poder puderam concentrar-se
historicamente na forma do Estado sem jamais serem redutíveis a ele. Seguindo
essa linha de investigação, Foucault vê o Estado como “nada mais que o efeito
móvel de um regime de governamentalidades múltiplas. [...] trata-se de passar
para o lado de fora e interrogar o problema do Estado, de investigar o problema
do Estado a partir das práticas de governamentalidade” [2008, p. 106]. Quando
Foucault fala da “governamentalização do Estado” [1979a, p. 292], ele não
pressupõe que o governo é uma técnica que poderia ser aplicada ou utilizada por
autoridades ou aparelhos de Estado; ao invés disso, ele compreende o próprio
Estado como uma tática de governo, como uma forma dinâmica e uma estabilização
histórica de relações de poder da sociedade. Logo, a governamentalidade:
[...] é ao mesmo tempo interior e
exterior ao Estado. São as táticas de governo que permitem definir a cada
instante o que deve ou não competir ao Estado, o que é público ou privado do
que é ou não estatal, etc.; portanto o Estado, em sua sobrevivência e em seus
limites, deve ser compreendido a partir das táticas gerais da
governamentalidade. [Foucault, 1979a, p. 292]
Atualmente,
percebe-se uma continuidade das artes de governar. Novos conceitos são
concebidos, porém percebe-se um prolongamento de estudos anteriores, não
necessariamente uma nova forma de política, mas sim sua transformação e
reestruturação na forma de controle e poder perante a sociedade. Novas técnicas
de controle são lançadas, como forma de iludir ou mascarar quem está exercendo
esse controle, como por exemplo através de marketing digital, fake news e novas
maneiras de fazer sua ideologia se perpetuar e tornar-se uma verdade absoluta
para a população. Isso nada mais é do que a evolução das relações entre Estado
e Sociedade.
Autora do
verbete: Cristina Bosi
REFERÊNCIAS
FOUCAULT,
M. Microfísica
do Poder. 8 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
SENELLART,
Michel. As
artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Editora 34, 2006. Tradução: Paulo Neves.
Hindess, Barry. Discourses
of power: From Hobbes to Foucault. Oxford: Blackwell, 1996.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe; Escritos Políticos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe; Escritos Políticos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.