Biopolítica: o exercício do poder sobre a vida
Imagem Biopolítica
O termo "biopolítica" designa a maneira pela qual o poder
tende a se transformar, entre o fim do século XVIII e o começo do século XlX, a
fim de governar não somente os indivíduos por meio de um certo número de
procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos viventes constituídos em
população: a biopolítica - por meio dos biopoderes locais - se ocupará,
portanto, da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da
natalidade etc., na medida em que elas se tornaram preocupações políticas. [REVEL, 2005, p.26]
Esse conceito de
biopolítica é construído por Michel Foucault em suas obras e expressa um poder exercido sobre
a vida – o biopoder – que se efetiva por mecanismos de controle sobre os corpos
dos indivíduos e sobre a “população”. Esta é entendida como um conjunto de
seres vivos, um corpo social para o qual o poder do Estado se volta para gerenciar
a vida em um duplo sentido: preservar os corpos e extrair a máxima disposição e
disciplina para produção.
Para além do
modelo de Sociedade Disciplinar - da vigilância e do adestramento -, a
biopolítica, enquanto tecnologia governamental de conhecimento e de regulação, atua
para capturar e moldar consciências individuais e coletivas, para direcioná-las
à produção e à reprodução da vida, como um meio, um recurso útil para atingir
determinados fins. Deve, portanto, ser compreendida na simbiose entre governo,
população e economia política, como propõe o autor.
Se o desenvolvimento dos
aparelhos de Estado
garantiu a manutenção
das relações de produção, os rudimentos de anátomo e de biopolítica
agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças que
estão em ação em tais processos
e
o sustentam; operam,
também, como fatores
de segregação e hierarquização social, agindo sobre as forças
respectivas tanto de uns como
de outros, garantindo
relações de dominação
e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos
homens à expansão das forças produtivas
e a repartição
diferencial do lucro
foram, em parte,
tornados possíveis pelo exercício
do biopoder com
suas forças e
procedimentos múltiplos. [FOUCAULT,1985, p.154]
Para Foucault, a
biopolítica se relaciona diretamente à constituição da sociedade capitalista e
à conformação das cidades modernas, onde a produção e os fluxos de mercadorias
e de pessoas no território ganham relevância, principalmente através do
controle espaço-tempo sob a supremacia da economia de mercado. A esse estágio
da história corresponde um “Estado de governo” – não mais necessariamente
definido pelos limites territoriais, mas pela massa da população, sendo essa o
seu alvo principal – que emprega a instrumentalização do saber econômico e
corresponde a uma sociedade controlada por dispositivos de segurança [FOUCAULT, 1999].
Desse modo, em
nome da segurança e do bem-estar dos habitantes, são adotadas estratégias de poder
e de “normalização” nas cidades que se voltam para resguardar a vida e a propriedade
de alguns e, simultaneamente, investem contra a vida e a liberdade de outros.
Nos termos de Foucault [2005, p. 130], a biopolítica tem como lógica “fazer
viver e deixar morrer”, o que evidencia um racismo de Estado, como estratégia de
poder que pode ser facilmente percebida nas cidades, marcadas por heterogêneos espaços
de controle e de proteção e por tratamentos diferenciados para os seus habitantes,
que ora são inseridos e ora são excluídos do corpo chamado “população”, a
depender dos interesses vigentes.
Giorgio Agamben também
traz reflexões críticas sobre a biopolítica, a partir de conceitos de Foucault,
e aborda os mecanismos de gestão da vida e de exclusão dos indivíduos na
sociedade. Na perspectiva de Agamben [2007], a biopolítica se fez presente
antes mesmo do desenvolvimento do capitalismo: “Pode-se dizer, aliás, que a
produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano.
A biopolítica é,
nesse sentido, tão
antiga quanto à
exceção soberana” e “na
biopolítica moderna, soberano é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor
da vida enquanto tal”. Nesse sentido, recorrendo à análise de regimes
totalitários, alerta para as conformações de poder em que “a biopolítica converte-se
necessariamente em tanatopolítica” que classifica vidas como matáveis, seres detentores de uma “vida nua”, uma “vida indigna de ser vivida” .[AGAMBEN, 2007, p. 14]
Recorrer ao conceito de biopolítica nos permite uma leitura da configuração do espaço urbano
brasileiro e das formas de poder que incidem sobre a cidade e seus habitantes, sobre suas condições particulares e gerais de vida, das diferentes expressões de
violência, de negação e de dominação que marcam o território e as relações sociais.
No princípio, o céu e a terra já guardavam mistério entre si. Da
noite para o dia o homem passou a presidir os peixes do mar, as aves do céu, os
animais selvagens, toda a terra e a todos os répteis que se movem sobre ela. Da
noite para o dia, o homem inventou de presidir outros homens e se formou um
estado de coisas, onde toda a criação foi violentada e o homem passou a sobreviver
de sua própria escória. E foi da noite para o dia que a delícia de paraíso no
qual estava o homem transformou-se no front de luta pela vida, a qual preço
for.
Amylton de Almeida e Henrique Gobbi, Lugar de toda a pobreza, 1983.
Amylton de Almeida e Henrique Gobbi, Lugar de toda a pobreza, 1983.
Autora do verbete: Jéssica Fernandes Giacomin
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Homo
sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo
Horizonte: UFMG, 2007. v. 1.
FOUCAULT, M. Em
defesa da sociedade: curso no Collége de France [1975-1976]. Tradução de
Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
FOUCAULT, M, História da sexualidade I: a vontade de saber, 7.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
FOUCAULT, M, História da sexualidade I: a vontade de saber, 7.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
FOUCAULT, M. Vigiar
e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
ALMEIDA, A. de.
GOBBI, H. Lugar de toda a pobreza. Vitória: UNIGRAFIC, 1983.
REVEL, Judith.
Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.