Multidão: reencontrar o comum

"Maio de 68" - Singularidades que agem em comum. Autor desconhecido.

“[...] as várias seções da força trabalho apresentam-se no híbrido metropolitano como relação interna, quer dizer, imediatamente como multidão: um conjunto de singularidades, uma multiplicidade de grupos e de subjetividades, que dão forma [antagônica] ao espaço metropolitano”. [NEGRI, 2008]

A cidade é caracterizada por conflitos e sobreposições de potências, uma complexidade que deve ser compreendida em sua essência. Influenciados por economias externas, ciclos de lutas e dinâmicas imateriais, a análise da microfísica vai de encontro ao das singularidades de seus agentes e nas formas de repreensão em que se encontram. Assim, diante de uma multidão singular e coletiva, fazia-se necessário o reconhecimento e organização do comum [NEGRI, 2008].

A multidão tem a capacidade de reconfigurar o cenário político de produção capitalista marcado pelo isolamento do homem da esfera pública, estando a liberdade fechada em si [RAZÃO INADEQUADA, 2019 in WERMUTH, SANTOS, 2018]. Posteriormente, essa concepção foi substituída pela busca do comum e encontro de singularidades, em que prevaleceu o sentido de democracia, sendo o governo de todos para todos, que as partes são uma expressão do todo e este se submete às regras das partes [RAZÃO INADEQUADA, 2019].

Essa recomposição capitalística direciona a recomposição da multidão. Influenciado pelo controle e interrupção do fluxo natural da metrópole, formas de resistências irrompem pelo território. Um exemplo disso são as manifestações iniciadas pelas classes operárias que passaram à proporção de metrópole, em que se organizam e ocupam os espaços públicos [NEGRI, 2008]. Esta recomposição da multidão, a maneira da teoria virar prática, se dá pelo movimento de luta, concretizado pelas greves sociais – um contrapoder de reivindicação pelo comum.

A multidão é um conceito que busca responder às manifestações políticas no Império – cenário pelo o qual a multidão passa, constrói ou transforma – de forma a instigar as percepções das singularidades que estão presentes no mundo.  Sendo um instrumento de resistência, os valores da multidão são a criatividade de contraposição, comunicação efetiva e auto-organização, que colaboram no aumento da potencialidade de cada um pela associação de singularidades [RAZÃO INADEQUADA, 2019].
“O povo é uno. A multidão, em contrapartida, é múltipla. A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, étnicas, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos. A multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares” Hardt e Negri, Multidão [apud RAZÃO INADEQUADA, 2019].
De mesma natureza e redução das diferenças ao uno, o povo é considerado uma falsa unidade, sendo submissa na relação soberano-povo e não representa unicamente a grande maioria; e, a massa é tida como corpo irracional de membros homogêneos [RAZÃO INADEQUADA, 2019; WERMUTH, SANTOS, 2018]. Todas as classes precisam da arte de governar, porém, devido à relação de forças, o povo não percebe que é o protagonista de todas as leis.

O termo multidão surge como oposição aos conceitos de povo e massa. A essência da multidão está na constante reformulação da diferença. Negri e Hard propõe definições para multidão: imanência, classe e potência. O primeiro está relacionado ao conjunto de singularidade, o segundo englobas as classes sociais, afirmando que nenhum corpo se sobrepõe sozinho e, por último, a capacidade da multidão em se desenvolver e ser independente [RAZÃO INADEQUADA, 2019].

Como um sujeito político, a multidão com suas aspirações vai contra à soberania atuante e em busca da separação entre social e político. Apesar do envolvimento nesse mesmo propósito, a multidão não acha essencial o resultado ser uma unidade tendo em vista as diferentes maneiras de se ocorrer, ou seja, reforça o engajamento da multidão na produção da diversidade [BROWN; SZEMAN, 2006].
“A multidão está engajada na produção de diferenças, invenções e modos de vida. Deve, assim, ocasionar uma explosão de singularidades. Essas singularidades são conectadas e coordenadas de acordo com um processo constitutivo sempre reiterado e aberto. [...] A multidão é a forma ininterrupta de relação aberta que as singularidades põem em movimento” [BROWN; SZEMAN, 2006].
Esse conceito traz a diferença como expressão em potência. Composta por diferentes elementos que se articulam de alguma forma, a multidão é um corpo biopolítico não unificado onde tudo nela é o comum. A desarticulação interna e a submissão podem interferir para que as singularidades ajam em comum. Além disso, sem uma lógica identitária, as singularidades se encontram diante de um comum instigante à ação, como as greves [RAZÃO INADEQUADA, 2019].

É possível perceber que apesar das manifestações ocorridas ao longo dos anos, são muitos os motivos de intervenção pairando as indignações dos diversos indivíduos contra a ordem global. Encontram-se facilidades de articulações do comum por meio de redes sociais, propícios às discussões sobre política e direitos civis. Quando a multidão reconhece a sua potência é capaz de externalizar e concretizar aquilo que lhes é de direito ausente da sobreposição de poder.


                                                                                     Autor do verbete: Layra Ramos Lugão

REFERÊNCIAS

BROWN, N.; SZEMAN, I. O que é a multidão? Questões para Michael Hardt e Antonio Negri. Tradução do inglês de Milton Ohata. Revista Novos Estudos, n. 75, p. 93-108. Jul. 2016.
NEGRI, A. Dispositivo metrópole. A multidão e a metrópole. Revista Lugar Comum, n. 25-26, p. 201-208. 2008.
RAZÃO INADEQUADA. Negri e Hardt – Multidão. 2019. Disponível em: https://razaoinadequada.com/2015/07/15/negri-e-hardt-multidao/. Acesso em 12 Jul 2019.
WERMUTH, M.A.D.; SANTOS L.M. Biopoder e resistência: A (bio)potência da multidão. RBSD - Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 5, n. 3, p. 108-131, set./dez. 2018.




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