Ficção - Verdade, imaginação e utopia


O mundo, para Platão, tinha três graus: O modelo [m], o reino das ideias; a cópia [cp], o mundo em que vivemos; e o simulacro [smc], a cópia da cópia, a imitação inútil e perigosa. Contudo, diferente do pensamento de Platão sobre a poesia, buscamos enxergar o simulacro como aquilo que põe em dúvida a cópia e o modelo, ou seja, a própria realidade e a verdade. Fonte: WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção? São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

O que você talvez não saiba é que essa palavra tão complexa veio do latim fictionem. Sua raiz era o verbo fingo/fingere – fingir – e este verbo, inicialmente, tinha o significado de tocar com a mão, modelar na argila. Além disso o verbo, possivelmente, se ligue ao verbo fazer que, por sua vez, liga-se à palavra poeta, já que, em grego, poiesis significa fazer. O poeta é, pois, aquele que faz, aquele que cria. [WALTY, 1985, p.16]

Para Platão, a poesia apresentava perigo para a cidade, pois seu caráter ficcional a afastava da realidade suprema, das ideias eternas. Segundo o filósofo grego, o poeta se ocupava com o erro, com o engano, com o falso – a cópia da cópia, uma imitação – e, assim sendo, a poesia, apartada da razão, era algo capaz de corromper a alma dos homens e os desagregar socialmente. Logo, a mimese poética – a arte como imitação da realidade, conceito que vem de Aristóteles – não teria qualquer utilidade para a República, pois lidava com um mundo de aparências, com ilusões distanciadas da verdade. De qualquer forma, mesmo Platão parecia não menosprezar a potência política da poesia – dado seu receio –, sabendo de seu latente caráter subversivo ao jogar o jogo dos simulacros e ao confrontar a própria realidade social.

No século XIX, Nietzsche assume uma postura crítica perante o conceito de verdade, propondo uma forma de pensar através da genealogia dos valores, na qual procura questionar a origem dos valores e o valor desses valores instituídos na moral. Para Nietzsche, as verdades tem por base ficções que os homens criam pela necessidade de sobrevivência, sendo algo fundamental nas relações humanas. A verdade é, portanto, fruto de um instinto que compele à criação de metáforas, metonímias e antropomorfismos, ou seja, de ficções. Depois de um longo tempo de uso, essas verdades passam a ser estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo:

[...] as verdades são ilusões das quais se esqueceu que são, metáforas gastas que perderam a sua força sensível, moeda que perdeu sua efígie e que não é considerada mais como tal, mas apenas como metal. [NIETZSCHE, 2001, p.12] 

O pensamento em Nietzsche abre caminho para uma nova abordagem, a qual não mais se ocupa da busca pela verdade, mas da produção de ficções. Não pretende-se com isso abdicar de toda verdade, ou de sobrepor o falso ao verdadeiro, mas de colocá-la em segundo plano. As verdades são essenciais para se organizar a vida social e coletiva. Quer dizer, ao contrário, que as verdades necessitam ser [re]avaliadas em prol da própria vida. Sendo assim, o simulacro que Platão apontava como perigoso na poesia se revela como uma potência do falso, que pode pôr em dúvida a verdade, que dialoga com a cópia e com o modelo e que procura reconfigurar a própria realidade.

Pôr a ficção no lugar da verdade, contudo, não é desfazer-se da verdade completamente, não é negar o seu valor para a vida; é, simplesmente, afirmar que a verdade é segunda, que não está dada mas deve ser criada, que não é princípio mas produto: produto de um trabalho criativo e ficcional, subjacente a todo o pensamento preocupado em agenciar o múltiplo da vida, da história, da cultura, do desejo. [PELLEJERO, 2011, p. 20]

A partir dessa perspectiva, os modos de fazer da arte e os modos de pensar da filosofia se entrelaçam, e assim a ficção se mostra como uma ferramenta significativa para dar movimento às ideias e aos conceitos. Na literatura, por exemplo, a ficção [científica, especulativa, surrealista, fantástica, escrita, cinematográfica] recorre paradoxalmente ao falso para lidar com a complexidade do real. O artista finge e assim altera as categorias do real e do não-real, do material e do imaterial, e nesse jogo de extrapolação cognitiva e de metáforas, o pensamento reconhece a sua própria potência crítica, para além da representação objetiva do real.

[...] não se escrevem ficções para eludir, por imaturidade ou irresponsabilidade, os rigores que o tratamento da “verdade” exige, mas sim para evidenciar o caráter complexo da situação, complexidade esta em que o tratamento limitado ao verificável implica uma redução abusiva e um empobrecimento. Ao ir em direção ao não verificável, a ficção multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento. Não nega uma suposta realidade objetiva, ao contrário, submerge-se em sua turbulência, desdenhando a atitude ingênua que consiste em pretender saber de antemão como essa realidade se conforma. [SAER, 2012, p.2]

Dentro da prática em Arquitetura e Urbanismo, pode-se traçar alguns encontros entre o pensar ficcional e o pensar sobre a arquitetura e a cidade. O próprio conceito de Utopia, cunhado a partir da obra Utopia de Thomas Morus, de 1516, oferece-nos um campo de especulações e projeções sobre a sociedade e, por consequência, sobre os espaços construídos que a conformam. Diversas obras desde sua época evocam o pensar sobre uma sociedade ideal, podendo-se citar, a partir do final do século XIX, o livro Notícias de lugar nenhum e o pensamento socialista utópico do grande expoente da Arts and Crafts William Morris [1890], o conceito-plano de cidade jardim de Ebenezer Howard a partir do seu To-morrow a Peaceful Path to Real Reform [1898], ou os próprios projetos utópicos do movimento moderno durante a primeira metade do século XX – tendo como forte expoente o arquiteto franco-suíço Le Corbusier e um modelo muito conhecido como o plano piloto para a cidade de Brasília no final da década de 1950 e início de 1960. Para além do projeto em si, como um produto acabado da atividade do profissional arquiteto e urbanista, há qualquer tipo de especulação e elaboração de cenários, frutos do anseio por projetos coletivos de futuro a partir de um pensamento crítico que extrapola as regras da imaginação. Mesmo que traçando aqui apenas alguns exemplos que contém essa ligação entre esses modos de fazer e modos de pensar – é possível, por exemplo, fazer leituras interessantíssimas sobre a produção da Ficção Científica, gênero literário e cinematográfico e de massas que ganhou grande atenção da academia na década de 1970, ou ainda, sobre os projetos-manifesto da dita Arquitetura Radical das décadas de 1960 e 1970 –, pode-se perceber que a prática imaginativa – fictícia e filosófica –, teórica e crítica, teve grande importância sobre o pensar sobre a arquitetura e a cidade, sobre a profissão e sobre o próprio espaço construído.


Imagem do livro Notícias de lugar nenhum de William Morris [1890].
Fonte: http://myweb.uiowa.edu/fsboos/NewsFromNowhere/index.html

                                                                Autor do Verbete: Mário Victor Marques Margotto

REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, Friedrich. Verdade e mentira no sentido extramoral [1873]. Comum, Rio de Janeiro, v. 6, n. 17, jul./dez. p.5-23. 2001. Disponível em: https://www.facha.edu.br/pdf/Comum17.pdf. Acesso em: 18 maio 2019.
PELLEJERO, Eduardo. Nietzsche como Falsário: A Apropriação Deleuziana da Potência do Falso. Existência e Arte, v. 6, p. 16-24, 2011.
SAER, Juan José. O conceito de ficção [1989]. Revista FronteiraZ, São Paulo, n. 8, julho de 2012. Disponível em:
https://www.pucsp.br/revistafronteiraz/download/pdf/TraducaoSaer-versaofinal.pdf. Acesso em: 18 maio 2019.
WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção? São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.



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