HETEROTOPIA – Foucault e o espaço contemporâneo.
Espelho. Autor René Magritte, 1937.
Do sítio em que me encontro no espelho
apercebo-me da ausência no sítio onde estou, uma vez que eu posso ver-me ali. A
partir deste olhar dirigido a mim próprio, da base desse espaço virtual que se
encontra do outro lado do espelho, eu volto a mim mesmo: dirijo o olhar a mim
mesmo e começo a reconstruir-me a mim próprio ali onde estou. O espelho
funciona como uma heterotopia neste momentum: transforma este lugar, o que o
ocupo no momento em que me vejo no espelho, num espaço a um só tempo
absolutamente real, associado a todo espaço que o circunda, e absolutamente irreal,
uma vez que para nos apercebermos desse espaço real, tem de se atravessar esse
ponto virtual que está do lado de lá. [FOUCAULT, 2006, p.80.]
Até o século XIX, havia a
associação profunda entre espaço e tempo na definição do real na vida do ser
humano. Foucault define aquela época com a época da localização. O sagrado e o profano,
o urbano e o rural, a cosmologia do espaço onde se opunha o celestial e o
terreno. Cada coisa no seu lugar e em seu tempo.
Após Galileu, compreendida a noção
do espaço infinito, os espaços sagrados se dissolvem do ponto de vista de
espaços fixos para a uma percepção de espaço em movimento, alterando o sentido
de espaço de localização para espaço de extensão. Essa percepção provocou
profundas modificações, para além, na apreensão do espaço como percebido
através de signos e localização das coisas.
Na sociedade moderna, com a
extensão do lugar já absorvida, se verifica uma nova forma de compreensão do
espaço: a localização. Sendo o território um lugar fixo bombardeado pela
informação advinda de lugares outros, a percepção dos espaços se torna um ponto
de vista, uma forma de posicionamento. As sensações, os desejos, as restrições
e as dicotomias passam a se alojar em lugares outros sem a necessidade de uma
referência geográfica, algo ainda distante de uma utopia de sociedade.
Na utopia pressupõe-se a
magnificência da sociedade no que ela pode ser de melhor e mais justa. Porém, a
utopia não encontra um lugar real e daí surge a heterotopia, cujo ideal não
se conecta com o território, ou seja, o real é uma ruptura com o território
em busca do ideal.
Há também, provavelmente em todas as
culturas, em todas as civilizações, espaços reais – espaços que existem e são
formados na própria fundação da sociedade – que são algo como contra-sítios,
espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais dessa
dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente,
representados, contestados e invertidos. Esse tipo de lugar está fora de todos
os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição geográfica na
realidade. Devido a estes lugares serem totalmente diferentes de quaisquer
outros sítios, que eles refletem e discutem, chamá-los-ei, por contraste às
utopias, heterotopia. [FOUCAULT, 2006, p.80.]
Foucault descreve formas de
heterotopia [sem desprezar a existência de heterotopia outras], subdivididas e
sintetizadas da seguinte forma:
Heterotopia de crise: a relação entre sagrado [ou reservado] e
proibido. Exprime a condição do privilégio de permanência em dada sociedade, e
a condição temporal, onde o sujeito passa por um período de crise em relação às
regras de tal sociedade, e deve permanecer em lugar outro, ou lugar algum, por
condição transitória. A essa tipologia de heterotopia estão associados os
hospitais e os asilos. Foucault também enquadra, nesta categoria, os marcos
temporais de iniciação, tais como: o serviço militar, o colégio interno, onde a
iniciação da virilidade deve ocorrer em algum lugar, fora do núcleo familiar,
embora com definição geográfica precisa. Analogamente, há situações de iniciação
sem necessidade de enquadramento geográfico [que estão em desuso nos dias
atuais], tal como a “noite de núpcias”, onde deve ser ato consumado em lugar outro,
fora do lugar consagrado. Em síntese, se referem aos espaços outros, do lado de
fora do espaço sacro.
Heterotopia de desvio: seriam os espaços designados por
instituições, tais como presídios e manicômios. Esses espaços têm o caráter de
reprimir os indivíduos de contato com a sociedade, pois já não se enquadram no
modelo admitido por tal sociedade, seja pelo cometimento de algum desvio em
relação às regras estabelecidas, seja pela impossibilidade de enquadramento no
convívio social. Portanto, essas instituições seriam espaços outros que não os
ditos oficiais da sociedade.
Heterotopia temporal: nesse caso existem os espaços onde o tempo,
como parte do nó da compreensão humana, de conexão com o espaço perdesse o
sentido. Nos museu e nas bibliotecas o tempo não passa e sim, se acumula. Essa
é uma característica de espaços desconectados do nó espaço-tempo.
Heterotopia da purificação: esses espaços se delimitam por barreiras
onde os ingressos são limitados. Os exemplos clássicos são os templos
religiosos e saunas públicas, onde se deve percorrer um rito para admissão dos
participantes, ou melhor dizendo, incluídos. Muito característico da lógica da
produção social do espaço através do mercado imobiliário, há também os condomínios,
de alto e médio padrão, onde somente uma parte da sociedade é admitida em seu
interior. Neste caso vale ressaltar a tentativa de reproduzir ambiências, em
áreas privadas [áreas de lazer], de espaços similares de caráter público se isolando
da cidade formal ou real.
Heterotopia de ilusão: associado aos espaços que transportam o
sujeito a épocas ou lugares diferentes do real. Nesse contexto, no teatro
haveria uma heterotopia de ilusão, pois durante a encenação vários momentos são
retratados com irrupções temporais através da troca de cenários. No caso de uma
peça que retrate um período passado [peça de época] essa desconexão temporal
seria ainda maior. No cinema, além das características presentes no espetáculo
teatral, há a condensação de imagens bidimensionais com ilusão tridimensional.
Esses espaços têm por característica transportar o espectador para outra época
ou aplicar uma ilusão de pertencer a uma narrativa outra que não a realidade.
Heterotopia da compensação: são espaços reais que simulam espaços
desconectados de suas características geográficas próprias. Nessa categoria se
enquadram os jardins botânicos, as estufas, os zoológicos que, em um dado
espaço real, organizam e reproduzem espaços outros, tais como flora e fauna
pertencentes a outros lugares. São espaços condensados e organizados que
simulam toda uma gama de itens de diversos locais distintos. Normalmente podem
ser reproduzidos em quase todo o planeta e têm a função de ser um inventário de
determinado tema.
O espaço da sociedade
contemporânea, quase sempre, apresenta uma ou outra característica das
heterotopia elencadas por Foucault. Alguns podem apresentar mais de uma
heterotopia, como, por exemplo, a cidade de Las Vegas e os parques temáticos
estadunidenses. Nesses locais encontramos a heterotopia temporal, da ilusão, da
compensação e da purificação em cada um dos cassinos e dos parques. Porém,
Foucault credita ao navio todas as heterotopias discutidas em um só elemento:
Um navio é um pedaço flutuante no espaço, um
lugar sem lugar, que existe por si só, que é fechado sobre si mesmo e que ao
mesmo tempo é dado à infinitude do mar. E, de porto em porto, de bordo a bordo,
de bordel a bordel, um navio vai tão longe como uma colônia em busca dos mais
preciosos tesouros que se escondem nos jardins. Perceberemos também que o navio
tem sido, na nossa civilização, desde o século XVI até os nossos dias, o maior
instrumento do desenvolvimento econômico (ao qual não me referi aqui), e
simultaneamente o grande escape da imaginação. O navio é a heterotopia por
excelência. Em civilizações sem barcos, esgotam-se os sonhos, e a aventura é
substituída pela espionagem, os piratas por policiais. [FOUCAULT, 2006, p.84.]
Autor do verbete: Marcello Gaiani Bragatto.
REFERÊNCIAS
"Outros espaços" (conferência no Círculo de Estudos Arquitetõnicos. ·14 de março de 1967), Architecture, mouuement. contlnuité. n2 5. outubro de. 1984. ps.46-49. M. Foucault só autorizou a publicação deste texto escrito na Tunísia, em 1967, na primavera de 1984. in Ditos e Escritos III – Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.